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Ceilândia ganha título de Capital da Cultura Nordestina no DF

Sabores, ritmos e memória ajudam a construir o maior reduto da região Nordeste no DF. Quase 70% dos moradores são de fora

Ceilândia ganha título de Capital da Cultura Nordestina no Distrito Federal. Foto: Renato Araujo
O recado, de improviso, quem dá, com muito bom humor e propriedade, é Zé do Cerrado. Radialista, poeta e cordelista paraibano há 20 anos radicado no Cerrado, o presidente da Casa do Cantador – espaço ícone da poesia e do cordel -, é só mais um dos milhares de nordestinos que abraçou a cidade de Ceilândia como sua segunda casa. São quase 70% entre baianos, cearenses, maranhenses, pernambucanos e piauienses, estes últimos com a maior representatividade no quadradinho. Uma realidade tão visível pelas ruas da RA que, no último dia do ano de 2019, o governador em exercício, Paco Britto, sancionou a Lei nº 6.474 declarando a “satélite” como a Capital da Cultura Nordestina do Distrito Federal.

“O Nordeste se encontra em Ceilândia. E se faz presente, sobretudo, pela sua cultura, rica e diversificada, indo do bumba meu boi ao frevo, do maracatu ao samba, além de outras manifestações”, destacou o secretário de Cultura do DF, Bartolomeu Rodrigues. “Recebo esse reconhecimento como muito carinho e que deve ser sempre incentivado”, endossou.

Emancipada como região administrativa em outubro de 1989, as origens da cidade, hoje com quase 433 mil habitantes, remota ao início dos anos 70, mais especificamente, março de 1971. Foi quando se deu o início da transferência de aproximadamente 82 mil moradores das ocupações não regulares da Vila do IAPI, Vila Tenório, Vila Esperança, Vila Bernardo Sayão Colombo e Morro do Querosene, para os setores “M” e “N”, ao norte de Taguatinga. O projeto de relocação, chamado de Campanha de Erradicação de Invasões – CEI, daria o nome à cidade. Quem lembra bem dessa época é a feirante baiana Laurita Pereira dos Santos, 75 anos, que chegou à nova capital do país em 1964.

A feirante baiana Laurita Pereira dos Santos chegou à região em 1964. Foto: Renato Araújo

“Vim acompanhando meu marido que trabalhou na construção da rodoviária antiga (rodoviária do Plano Piloto)”, revela a pioneira. Ela se encaixa na principal motivação dos moradores da cidade para deixarem sua terra natal, segundo pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), de 2018, da Codeplan (veja quadro). A segunda motivação é a busca por um emprego melhor. “Tenho quase 50 anos de Ceilândia, amo essa cidade. No começo, a nossa banca ficava ao relento, no barro. Com ela, ajudei meu marido a criar nossos sete filhos”, conta dona Laurita, que faz parte de outro dado significativo. Em Ceilândia, a população feminina é maior do que a dos homens, representando 52, 5%.


Também faz parte deste perfila a pernambucana de Belém de São Francisco, Maria do Socorro Pires. Do alto de seus 90 anos, ela tem muita história para contar sobre Ceilândia. Chegou aqui em 1957, acompanhando o marido, comerciante que veio tentar a sorte no coração do País. “Ah, com 62 anos de Brasília acho que já nem sei o que é ser nordestina”, observa, com lucidez. “Primeiro moramos no Núcleo Bandeirante, 14 anos, depois viemos para Ceilândia, que acolheu todos os nordestinos. Somos um povo unido, um ajudando o outro”, comenta.

Piauiense de Delta do Parnaíba, Maria Pinto Ferreira mora em Ceilândia há 32 anos. Chegou à cidade no final dos anos 80, em busca de novas expectativas para ampliar seus horizontes, morando com parentes. Não saiu mais. “Dizem que quem bebe água de Brasília nunca mais saí daqui, né. Pois foi o que aconteceu comigo”, brinca ela, há dez anos vendendo produtos de utilidades domésticas na feira de Ceilândia, um dos espaços mais tradicionais da cidade. “Aqui tem tanto nordestino que se fizer ‘xô’, a feira fica vazia. É um povo muito acolhedor, que ajudou a fazer essa cidade”, constata.

Viagens sensoriais

Sarapatel, caldo de mocotó, baião de dois, dobradinha, buchada de bode, moqueca. Todos esses pratos típicos do Nordeste podem ser encontrados na Barraca do Assis. Ponto cativo na Feira de Ceilândia, o espaço é um dos vários lugares da região central da cidade onde o nordestino mata a saudade de sua terra natal usando o paladar. O comando da cozinha fica por conta da maranhense Rosilene Alves de Caldas que se enquadra num número importante. Quase 37% dos ceilandenses trabalham na própria região. “Vim acompanhando minhas filhas que deixaram o Maranhão para estudar. Temos saudade, mas Ceilândia nos acolheu muito bem, acostumei com o lugar, os nordestinos que moram aqui nos fizeram sentir em casa”, admite.

E não é apenas por cheiros e sabores que o nordestino morador de Ceilândia pode viajar numa experiência sensorial que o conduza as origens. Por meio do ritmo e poesia da sanfona alegre de Luiz Gonzaga, dos traços marcantes da xilografia de J. Borges ou dos versos hipnotizantes do poeta popular, Patativa do Assaré, os nordestinos moradores de Ceilândia encontra uma forma genuína de união. “O Nordestino é muito territorialista, gosta muito de estar junto, onde tem uma sanfona ele está encostado, onde tem uma viola ele está encostado, é justamente esses eventos ligados à cantoria, forro e cordel, que unem esse povo aqui no Cerrado”, avalia, Zé do Cerrado.

Uma nação nordestina no coração do cerrado

E foi para manter cada vez mais unida essa nação nordestina do Planalto Central que, no final de 2019, a Casa do Cantador inaugurou a Cordelteca João Melchiades Ferreira. Dedicada exclusivamente à literatura nordestina, o espaço – que homenageia o poeta paraibano considerado um dos grandes nomes da primeira geração de cordelistas nordestinos – é um dos maiores centros literários exclusivos para a narrativa que conta as histórias do homem do sertão. São cerca de 1600 título narrando folclore, poesia, teatro, lendas e contos.

“Foi um grande presente que a comunidade que gosta de cordel, tanto o nordestino, quanto o não nordestino, ganhou, neste final do ano passado da Secretaria de Cultura”, agradece o gestor Zé do Cerrado. “O nosso plano é ampliar o acervo buscando várias parcerias pelo Brasil. Tem muita gente fazendo cordel, com muita coisa para nos mandar e acredito que, em menos de um ano, vamos ter aí uma faixa de quatro a cinco mil cordéis catalogados”, planeja.